Após alguns ensaios - este espaço renasceu! Esta será a noxa nova casa migox e colegas... sejam Bem-Vindos

Saturday, February 24

Transparente


Lembro-me de ficar encandeado por aquela visão - nenhum outro lago em qualquer outro ponto do mundo se coloria de tal forma. Inspirei fundo, teria encontrado a paz que perdera? ter-me-ia encontrado? Ao longe, o guia e os submissos turistas não pareciam estranhar a minha ausência, eu já há muito me tornara invisível para com o mundo. Houvera, há algumas horas, aterrado, apreensivo, na Tailândia - cumprira a vontade do meu irmão, mas a tua ausência carregara a viagem de um peso maior. Contudo era, agora, com descomprometimento que perdia a trupe de vista. Mergulhei a minha mão - não a reconheci. Não pude fugir de mim, a transparência da água obrigou-me a ser verdadeiro. Tentei ignorar essa evidência e num novo olhar sobre o lago vi com absoluta nitidez a refracção dos raios solares na água, as rochas submersas banhavam-se de diversas cores e haveriam sido pretexto de lendas, de episódios fantásticos onde o divino se materializa deixando nas suas costas um traço da sua presença.
A reflexão de tais cores na minha mão afastou-me da realidade, só a temperatura gélida da água obrigou-me, algum tempo depois, a retirá-la, passei-a na testa suada. 'Envelheces-te terrivelmente nestes dois últimos anos.' Senti, novamente, no meu peito a dor da tua perda, e revi mentalmente o exame incerto diagnosticando que a enfermidade já se encontrava irreversivelmente espalhada. Nada te disse, menti a mim próprio, decidi não te fazer sofrer mais com as sessões que já te haviam tirado muito do teu ser e do meu, e fiquei durante esse último mês abraçado, sobressaltado com a fugacidade de te ter novamente nos meus braços, e assim foi, abraçado que, já sem visão, te vi partir. Agora que olho para trás, destes dois últimos tempos nada mais recordo do que estarmos abraçados, tenho medo de me recordar o quão felizes fomos a ver o Tejo, de lembrar o teu olhar brilhante, o teu sorriso. Afundei-me…

Junto ao lago um rapaz chorava ininterruptamente a morte do seu pássaro. Trouxera-o consigo para poder pintar o lago, e o pobre do pássaro que há uma semana houvera sido encontrado caído sem uma asa, morrera na mão do dono, provavelmente devido ao entusiasmo do rapaz. Ouviram-se passos - era o seu mestre, o rapaz questionou no seu choro: 'Mestre, o que existe para além da esperança?'
'Vazio...' – disse o lama vagamente – 'Esperança significa uma crença passiva numa hipótese, mas o Homem não foi talhado para se mover em hipóteses. Toda a força que ela nos dá são sombras das verdadeiras sensações, das sensações que advém duma certeza, e essa existe dentro de cada um de nós, a certeza de que os rios flúem em direcção ao mar, porque assim deve ser, a certeza de que, tal como o teu pássaro, libertar-nos-emos um dia da Terra, porque assim deve ser. A vida tem um rumo, nós nela somos protagonistas, podemos praticar incansavelmente o bem, até nos sentirmos tão leves quanto o ar, mas também somos livres de pecar e, por isso, sofremos até nos sentirmos libertos da nossa falha, nesta ou em outras vivências. De que estás a espera?, entrega o teu ser a essa força e solta as correntes que te prendem à caverna das sombras, se consegues ver um novo brilho no que te rodeia é porque o compreendes. Já não és mais rapaz.'
O homem percebera que num lugar distante da Terra o seu pássaro, em paz, continuaria a construção dessa edificação que nos foi imposta. Deixou, pacificamente, que seu lama desaparecesse – nunca existiu, de facto, nenhum lama. Já não iria pintar o seu lago. No seguinte momento, num rasgo de ânimo, o homem deita as suas gavetas e ferramentas ao lago, que calou ao longo dos séculos tudo o que vira. Enquanto o homem se afasta, as tintas percorrem verticalmente á água transparente, como um pó mágico de mil cores, e assentam calmamente no seu fundo, como que envoltas em sabedoria.

Já não é a esperança num futuro diferente que me move, mas sim a convicção de que, onde quer que estejas, estarás num lugar digno da tua essência, a convicção de que numa próxima vivência nos possamos abraçar e sentir nosso o tempo, até que em afectos nada sobre.
Lavei o meu rosto em água. 'Estás diferente.' Deitei-me e olhei para o céu, as lágrimas que agora caíam camufladas pelo rosto molhado significavam que tinha alcançado esse equilíbrio entre o meu ser o teu e as coisas, não haveriam mais receios, só uma saudade apaziguadora.
Despi-me e mergulhei em direcção ao infinito.

[Inspirado, a teu desígnio, na palavra esperança.
Multimédia complementar: ‘Nazuk’ de Maria João e Mário Langinha.]

2 Comments:

Blogger SAMloveshumanities said...

tava por aki a ver os teus blogs e a ver k aindas andas pra ki a escrever lool mt fix.. i love you and miss u primo

2:23 AM, March 08, 2007

 
Blogger Unknown said...

Caro Rui: Um dia destes preciso de falar contigo... D

6:58 PM, April 10, 2007

 

Post a Comment

<< Home