O Episódio Abraão, patriarca e pastor, teme e não treme. A grande prova se coloca – oferecer o seu único filho legítimo em holocausto numa montanha a indicar por seu Pai. Prepara os jumentos e alguns escravos e parte para uma viagem focada na faca do sacrifício e no filho da espera – Isaac. Ouve a voz de seu Senhor. Abandonando os seus preparos, sobe, apenas na presença de seu filho, até ao cume de Morija e prepara o altar da oferta para o seu Deus.
Mas quando a ele amarra Isaac, ouve de novo essa voz que lhe pede para não fazer mal algum a seu filho – Abraão o temera e não tremera. No momento da revelação avista um cordeiro, a imolação, com seus chifres presos a um arbusto.
Deste modo, Javé providenciou seu filho para o abençoar com a fertilidade das estrelas e da areia – preparando assim a chegada do Enviado. Tira a segurança a seu filho para poder fazer a promessa e o dom.
Símbolo de uma época onde os primogénitos eram considerados pertença de Javé, aqui surge o eco da promessa do seu resgate.
Parte ICavaleiro da Fé Abraão não sabe se recupera Isaac, nem o espera recuperar – ele crê. Cumpre a ordem divina sem a discutir e, por isso, alcança o ideal ético. Não vive o drama trágico nem se perturba pela razão. Por não subordinar a sua conduta à razão tudo alcança. Tudo faz em obediência à sua vontade – a solução reside em nós. É, deste modo, herói da fé – tem uma relação absoluta com o absoluto. Quanto muito, cada um de nós será herói poético, porque vive o martírio, a tribulação e a incerteza para provar do testemunho de verdade. Nunca abdicamos da razão e, por isso, sofremos a infelicidade de um desentendimento entre a alma e a corpo (carne), que nos aproxima da loucura.
Lembremo-nos que como pano de fundo a esta passagem surge indubitavelmente Sara, mulher estéril, no fim da sua idade. Mas em nenhum momento vemos Abraão vacilar. O único testemunho de fé que se aproxima do de Abraão é dado por Job – símbolo do Homem encarcerado. Mas, ainda assim, é distante de Abraão. Job também realiza esse movimento místico de resignação ao infinito, mas é prisioneiro do sofrimento e da dor (7, 11 e 16).
O Paradoxo da Fé, a Abordagem Parece-me que o objectivo principal do episódio de Abraão em Morija é o de explorar os limites do paradoxo cristão do Deus-mártir. Sofrer pela Verdade – o paradoxo da fé. Até onde vai a nossa fé? Como a cultivar? Segundo Kierkegaard, o movimento de resignação ao infinito concretiza-a e torna-a ilimitada.
Da viagem a Morija pouco ou nada ouvimos de Abraão – não se trai. O paradoxo intensifica-se. Mas até que ponto é compatível a interpretação da fé quando esta recai sobre uma morte? E para mais de um filho?
Descartes nunca duvidou em matéria de fé – não devemos ser presumidos ao acreditar que Deus também dar-nos-ia uma explicação. Contudo, teria este sacrificado seu filho?
Importa também acrescentar um ponto. Embora se formule a substância da fé não resulta que daí se alcance a fé. Fé é paixão, não advém dum pacto ou necessidade. É relação afectiva que se desenvolve com o divino. É crença e não esperança.
Para responder ao paradoxo de fé que constitui este episódio restringir-nos-emos ao descritível, ignorando as múltiplas interpretações nas quais a bíblia é omissa. Qual a expressão de Abraão? Qual a evolução da expressão de Abraão? Compreenderia Isaac seu pai? Terá implorado pela sua juventude, pelas suas esperanças? Como se torna a relação entre ambos, após esta viagem?
É, ainda, importante compreender o papel do episódio à luz do seu contexto histórico. Este passa-se próximo de XVIII ac, época onde era considerada prática comum, nos arredores de Israel, o sacrifício humano a deuses.
Luta pelo Absurdo Nada será perdido na sua grandeza – objecto que amou. Compreende-se que o poeta não possa cumprir o papel de herói. Numa tentativa de tornar o seu herói perene, admira-o e dele se orgulha. Há, assim, quem ame o possível, amando-se a si, idolatrando outros. Mas há também o maior, aquele que ama o impossível, quem ama a Deus. Assim o é porque num combate contra um homem ou contra mil é usada a força, mas no combate a Deus é usada a nossa fraqueza – a mais difícil das batalhas.
O Homem é também carne e, por isso, é ser imperfeito. Dito isto, percebe-se porque Abraão é o maior dos heróis. Em si força é fraqueza e esperança é demência. Senão vejamos: abandonou a sua terra para ser estrangeiro numa terra prometida, onde nada evocava o que amou; trocou a razão pela fé, caso contrário nunca teria realizado a viagem.
Sempre foi o eleito de Deus. E se, porventura, fosse por Ele deserdado, melhor compreenderia a sua situação. Mas nunca lamentou ou chorou este desígnio. Para além disso, é na bíblia a única personagem que acreditou na bênção de todas as nações.
É importante fazer uma abordagem do episódio – que pai que ame o seu filho não perderia a sua fé em tal situação? O facto é que Abraão sempre o amou e sempre possuiu fé. A fé nem sempre acompanha o coração – é esta a cruz que um cristão terá de carregar toda a sua vida.
Neste sentido a dificuldade de cada vida não é o que mais importa, dado que a fé pode ser atingida por um homem de espírito simples. O grande obstáculo é que não conseguimos ter uma plena confiança no absurdo. Ainda que creiamos que Deus é Amor, a coragem é atingível, mas a fé plena não. Nunca ousaríamos fazer o que fez Abraão.
Antes houvera sido prometido a si uma descendência numerosa. Mas tal poderia derivar de Ismael, filho seu e da sua escrava Agar. A sua conduta aqui poderá, porventura, ter sido legada pelo pensamento de que Deus não lhe exigiria Isaac, contudo, certamente mostrar-se-ia disposto a entregar-lhe seu filho se tal fosse necessário. Porque acreditou no absurdo. Teve fé. E como toda a força de vontade que se ergue contra o vento, que nos afasta da loucura (ainda que, por vezes, nos deixe entontecidos), pôde gozar já com seu filho no altar e a faca em sua mão duma grande felicidade. O vigor de poder ter novamente o seu único filho legitimo nos seus braços. O segundo nascimento de ambos.
Parte IIO Movimento de Resignação ao Infinito A matéria da dialéctica da fé é a mais subtil de todas. Imaginemos que Abraão sacrifica o seu filho em casa, afim de não ter que se dirigir ao monte de Morija. O objectivo final é o mesmo. O que falha então? A dialéctica. É possível amar a Deus sem fé, quando este se reflecte sobre si próprio. Mas o amor verdadeiro é aquele que é dirigido a Deus com fé, e aqui reflectimo-nos sobre o próprio Deus – resignação infinita.
O movimento de fé em virtude do absurdo não perde o finito. Abraão foi Homem e teve fé plena. Logo o movimento de resignação ao infinito cumpre o finito. Mais uma vez também este é subtil. Imaginemos que damos um passo audaz e, por isso, sorrimos para connosco – comprometemo-nos. Abraão nada diz, nada aparenta. Não se trai. Parece-me que um tal movimento em pleno não está associado à qualidade humana. Nesse caso seríamos um escriba devoto sem alma.
Um herói da fé como Abraão não deixa de ser um ideal. Apesar de pagar os favores pelo mais elevado preço (tudo em função do absurdo), conhece a felicidade do infinito. Por experimentar a dor da renúncia ganha uma nova sabedoria e não sofre qualquer inquietação.
Para realizarmos este salto ou movimento não podemos recear o âmago dos pensamentos nem dissimular sensações. Para sermos heróis da fé temos, assim, de aprender a prescindir. Para nunca voltarmos a ser heróis trágicos ou poéticos. Cada volver de olhos terá de abarcar uma vida. E se algo anunciar impossibilidade, teremos de permanecer calmos e agradecer. Caso contrário, a alma dispersar-se-á no múltiplo para correr atrás dos problemas da vida. Para atingir este ideal imitaremos Abraão que, me parece, ter concentrado o trabalho do pensamento num só acto de consciência. Mas, porventura, o mais doloroso para o cumprirmos será a ausência de desejo em converter-se noutro ser – isto obriga-nos a nos esquecermos de nós próprios, tal como uma borboleta não se recorda ter sido larva.
A memória, neste episódio, poderá ser tida como fonte de dor e, por isso, parece-me ser intencionalmente eliminada. Num movimento como o de resignação ao infinito, não podemos abandonar a resignação. Devemo-nos bastar a nós próprios, mesmo quando amamos, afim de conservar a frescura do amor. O prémio será a reconciliação com a vida e Deus – o repouso, a paz e a consolação no seio da dor.
Existem, portanto, dois patamares. O inferior, a cultura que leva o indivíduo a conhecer-se. O superior, o movimento de resignação que leva o indivíduo a alcançar a vida pela fé. Após esta transição tudo é possível aos olhos de Deus. Tudo. Reconhecer possibilidade na impossibilidade é crer no absurdo.
Note-se que resignação não implica fé, mas é a ela indispensável. É comum as pessoas perderem a fé no momento em que deviam, precisamente, realizar o movimento. Mas, mais uma vez lembremo-nos que a recompensa é grande – a harmonia do meu amor pelo ser eterno. Com o movimento nada renuncio, tudo recebo. Daí Abraão não ter renunciado Isaac, mas o obtido. Se não conseguirmos ser cavaleiros da fé, podemos cair em cavaleiros da resignação e, por isso, sentirmo-nos estranhos. Mas devemos olhar sempre para ela, porque a fé foi o maior elogio feito aos homens. Não coremos ao confessar a nossa fé. Não temos culpa de lá fora haver o homem incomensurável com a realidade.
Uma caminhada de três dias, para num instante acender o fogo, ligar Isaac ao altar e afiar a faca. Tudo se resume a um momento. E quando ele a nós se colocar, avançamos? Daremos esse salto místico?
A Moral Paradoxo este. Fazer dum crime um acto santo e agradável a Deus. Mas não devemos olhar para ele deste prisma. Porque não se reduz a nenhum raciocínio, e como vimos a fé começa onde acaba a razão.
A fé não implica moralidade. A moralidade é imposta por comparação a um modelo – o geral. Para alcançar a fé (acima do geral), devemos primeiro alcançar o geral para depois nos isolarmos, isso obriga-nos a suspender, por vezes, o dever moral na nossa conduta. Se Abraão tentasse a moralidade não sacrificaria Isaac ou teria de confessar a sua crise religiosa. Toda a história bíblica mudaria o seu rumo. Contudo, não deixa de cumprir o geral ao nada dizer, o resultado da sua intervenção permitiria julgá-lo.
O pai ao amar mais um filho que a qualquer entidade está a cumprir um dever moral que molda a sua conduta, mas finda no herói trágico. Só Abraão ultrapassa esta barreira. Não devemos confundir virtude moral com vontade divina.
Note-se que se Abraão não agisse em conformidade com seu Pai o seu percurso não seria, portanto, uma suspensão teleológica da moral e, por isso, Abraão seria um assassino. É neste ponto sensível que se comete o fanatismo em nome da religião.
O processo do isolamento sobre o geral pesa sobre a cruz que carregamos. Muitos podem ajudar aquele que tenta ser herói trágico, mas ninguém pode auxiliar quem segue a estreita senda da fé, apesar de ninguém dela se excluir.
Comove-me a grandeza de Maria. Que não proveu de ser bendita entre as mulheres. No abstracto, em presença dum favor, todos têm os mesmos direitos, mas o pensamento purifica-se exercendo-se sobre as coisas. Maria deu à luz um filho graças a um milagre e aí sofreu como todos, sofreu a angústia do seu paradoxo. Apesar de caritativo, o anjo não disse aos outros para não lhe desprezar por lhe acontecer o extraordinário. Ninguém a pôde compreender e, por isso, foi ofendida. Não era formosa nem precisou da admiração do mundo. Superou o geral para ser serva do Senhor, alcançando a excelência.
Dever e Amor Haverá um dever absoluto para com Deus? Se pelo dever me regesse voltar-me-ia a exprimir no geral. Não é pelo dever que entro em relação com Deus. O dever do amor ao próximo é um amor referido a Deus, mas nele entro em relação com o próximo. O amor quando tem sentidos vários, torna-se suspeito, tal como os sentimentos que nos repugnam. Por outro lado, não se deve confundir dever para com Deus com dever amar a Deus. E se Abraão amasse incondicionalmente mas sem dever seu Pai Javé? Algo teria mudado? Para se ser um verdadeiro cavaleiro da fé é preciso um supremo egoísmo. Só como indivíduo posso alcançar essa fé. Contudo, ao me exprimir já não é absoluta. Daí o paradoxo – o testemunho de fé não se consegue fazer compreender.
A parábola pouco visitada do Novo Testamento, no Evangelho de São Lucas XIV 24 diz-nos: ‘se alguém vem a mim e não me odeia […] não pode ser meu discípulo’. Estas palavras que ferem podem ser pretexto para exprimir essa vontade interior. A de que cada um de nós é responsável pela construção da sua torre. O ódio a que se refere o excerto poderá pretender captar a audácia e persistência que teremos de empregar nesse caminho. Mas se o nosso Deus exige amor absoluto, como compreender esse ódio? Exactamente pela manifestação da diferença entre amar Deus e o próximo. Novamente, o herói trágico renunciar-se-ia para exprimir o geral, a moral. Já o herói da fé, tal Abraão, é obrigado a renunciar o geral para se converter em Indivíduo. Parece belo tornarmo-nos compreensíveis no geral e terrível caminharmos isolados. Mas é esse o peso da cruz, ainda que não venhamos a ser compreendidos.
Abraão conhecia a alegria de viver com seu filho Isaac, mas não era só essa a sua missão. Deus testou-o. E Abraão pouco nos revelou para além da sua fé e do seu temor. A sua vida estava destinada a ser um livro sob o sequestro divino. Mas pode-se justificar moralmente este silêncio?
O Silêncio Moralmente dever-nos-íamos libertar do secreto para nos manifestarmos no geral. Contudo, a moral não implica a fé. A fé não é primeira imediatidade, não pertence ao visível – domínio estético. A fé é imediatidade ulterior. E, por isso, o oculto é a tensão da vida dramática. Paradoxalmente a fé exige o segredo, recompensando-o. Mas fará sentido, esta exigência, quando intercede com a vida de outrem? Sabendo, para mais, que a ética exige manifestação e pune o oculto.
‘Se guardares silêncio ao mundo, darás ao mundo uma criança que é Deus, se atraiçoares o segredo, serás homem’. O silêncio como tomada de consciência da união com Deus, que não pode ser perturbado pelas exigências da ética. Esta visão que supera o geral, não pode degenerar no demoníaco nem na loucura. Demoníaco é ter desprezo para com os homens. Loucura é o sofrimento do génio na vida, que pode causar o ciúme divino – o ser desorientado perante o geral. Abraão também não podia ser incrédulo – esfomeado de alegria em conflito perante o calar (sacrificar a moral) e o falar (traduzir o absurdo). ‘Quando jejuas unge a cabeça e lava o rosto, afim de que os homens não vejam que jejuas’.
E, por isso, Abraão teve de desprezar Sara, Ezequiel e Isaac, renunciando ser cavaleiro estético, ético ou trágico para ser um cavaleiro que conhece a solidão – o cavaleiro da fé. Se não me posso fazer compreender, não falo. Um último abraço a Sara, Ezequiel e a Isaac acusar-lhe-ia hipocrisia. E assim será lembrado. Abraão, aquele que resignou a tudo e ao infinito ao renunciar Isaac. Aquele que realizou o movimento da fé para junto dele pairar a consolação de que o Eterno devolver-lhe-ia Isaac em virtude do absurdo. Conheceu a angústia de viver no silêncio. Permaneceu fiel ao Amor de Deus. E tirou a faca do sacrifício, e realizou o movimento, e sempre soube o que fazer o que fazer em cada momento, e alcançou a fé verdadeira. E com ela a paixão.