Após alguns ensaios - este espaço renasceu! Esta será a noxa nova casa migox e colegas... sejam Bem-Vindos

Saturday, February 23

Iluminura

Trago da cozinha uma laranja - não é isso que me traz aqui. A coisa da laranja também seria um bom motivo, mas o meu ser anseia acolher algo diferente. Sinto o meu corpo inclinado sobre um rio parado, consigo sentir cada músculo e também nenhum, consigo me projectar numa imensidão de sítios, perfeitos ou imperfeitos - sempre com essa capacidade sobre-humana de me levar ao rastejo – já não consigo aguentar mais sensações! Chega! Amo tudo, sou corruptível. Quero me unir à natureza.

Habituaram-me a não andar no solo, na terra, no barro no qual agora deslizo. Caio de novo. O sol é forte, a terra é já árida. Sem andar é ela que me leva para junto de um ancestral chorão – não te abraço irmão, mas projecto-me em ti, desejo como mais ninguém ser teu, tronco, ter calma sabedoria e poder ver passar milénios com o olhar calmo de quem não precisa sentir a música de uma palavra… Só o silêncio da natureza inocente que flui ao sabor de um desígnio mais alto sem o contestar.
E agora vim para o teu seio escrever, as tuas folhas cobrem-me. Eu sou o teu filho pródigo. Era-o. Tu afastas-te, dás lugar a um longo rio, mas que tem inicio, na tua Mãe – mulher de seus trezentos anos que chora num pranto grave e melódico – o meu sentir, a terra e os seus batimentos. Afundo-me. Julgo sentir a água correr por cima de mim. Ah! Sabedoria a minha, se alguém a pudesse testemunhar – paz eterna, angústia tremenda: poder ver tudo isto silenciado perante o Homem.

Aparece o Homem. Já não é natureza o meu ser, o meu ser quer ser natureza. Continua o Homem. Já não sou árvore. Mas minhas pernas continuam enterradas na terra, consigo sentir as minhas raízes que espalharem-se por alguns metros. Continua o Homem – parte II. Porque não poderei ser natureza? Volto constrangido para o meu quarto, deitando-me novamente sobre este cubículo sem tecto. Posso sentir ainda as minhas raízes sob os lençóis. O Homem torna-se grave. Sou obrigado a justificar os meus sentimentos. Será esta uma tentativa de encontro para comigo? Não poderei ser tudo somente e nada absolutamente? Espelho-me no céu. Se esta é uma tentativa de me conhecer, porque escrevo também?
Sou Homem. Quero amar ninguém, quero que ninguém me ame, só me quero amar a mim, eu mesmo. A beleza perde-se, o olhar agora é profundo. Disse-me um Eu para um outro Eu que lançaram duma estrela, dessas onde se vão escrevendo os actos heróicos de uma vida encomendados pelo purgatório, que o sujeito responsável pelos meus Eus deixou cair o rolo e que esse deu uma volta e meia ao Universo. Já não sou o que era há dois segundo, evoluí para no minuto depois regredir. Ahh que gozo tenho eu de Fernando Pessoa, Ser esmagado pela brevidade e fugacidade das suas sensações – tão curtas e pesadas como as minhas, mas sempre tão preocupadas com a chegada desse Homem.

Já disse, não escrevo para ser adorado, mas só para me amar, para tornar puro o que em mim reside de putrefacção – eu tão completamente. Não! Não por minha causa. Levem-me a amar um arbusto. Só por minha culpa – do Homem, ser feio, feito de carne. Deus, castigou-te Homem – deu-te sabedoria e discernimento, e no mesmo momento podes-te compreender que só o finito te espera. Ele poderia ter deixado cair uma corda sobre a Terra. Assim, aqueles que como Eu querem a Ti chegar, por ela trepariam sonhando com o perpétuo e caminhariam até não haver amanhã – tornar-se-iam espectros e, cansados de toda a caminhada infindável, caíriam verticalmente em direcção ao solo. Porque nunca te dês-te a conhecer – uma busca não te revelaria. Basta a certeza.

Vejo-me agora a seguir o meu caminho. Uma mochila laranja, uma colecção de vivências e sítios, afastados e sobrepostos – minh'África, minh'Ásia. Como me pude ter afastado de vós por tão longo tempo. Já não me conheço. Ocidentalizaram-me, tenho até receio de rever os meus princípios, uma vergonha insondável.

Mas agora voltei para os seus braços minha Mãe, porque eu comporto toda a vossa amargura, comporto toda a vossa nostalgia, comporto todo o vosso culto e temor. Nunca a mim me haveis sido estranha, conheço os teus seios, sem onde me posso saciar… também de vós trago esse animal.

Já cansei de tanto colorir as minhas paredes – e como não tenho tecto no meu quarto também não tenho já cor. Sou um cidadão do mundo. Já não posso fingir, não tenho mais onde rabiscar.

Também já ganhei a Saudade daqueles que permanecem na minha terra, doem-me as caravelas que já partiram há séculos e que nunca mais voltam – já me cansei de olhar o mar. Não voltam! Mas a vossa grave melancolia atormenta-me a cada segundo. Um destes dias, evadir-me-ei do Homem, e ascenderei até encontrar o tecto do universo – então aí tornar-me-ei árvore, crescer-me-ão raízes e no final dos tempos comportarei todo o Mundo. E então serei cuspido pelo caule e adormecerei em seu regaço com uma certeza maior.

Ensaio

O Episódio

Abraão, patriarca e pastor, teme e não treme. A grande prova se coloca – oferecer o seu único filho legítimo em holocausto numa montanha a indicar por seu Pai. Prepara os jumentos e alguns escravos e parte para uma viagem focada na faca do sacrifício e no filho da espera – Isaac. Ouve a voz de seu Senhor. Abandonando os seus preparos, sobe, apenas na presença de seu filho, até ao cume de Morija e prepara o altar da oferta para o seu Deus.
Mas quando a ele amarra Isaac, ouve de novo essa voz que lhe pede para não fazer mal algum a seu filho – Abraão o temera e não tremera. No momento da revelação avista um cordeiro, a imolação, com seus chifres presos a um arbusto.
Deste modo, Javé providenciou seu filho para o abençoar com a fertilidade das estrelas e da areia – preparando assim a chegada do Enviado. Tira a segurança a seu filho para poder fazer a promessa e o dom.
Símbolo de uma época onde os primogénitos eram considerados pertença de Javé, aqui surge o eco da promessa do seu resgate.


Parte I

Cavaleiro da Fé

Abraão não sabe se recupera Isaac, nem o espera recuperar – ele crê. Cumpre a ordem divina sem a discutir e, por isso, alcança o ideal ético. Não vive o drama trágico nem se perturba pela razão. Por não subordinar a sua conduta à razão tudo alcança. Tudo faz em obediência à sua vontade – a solução reside em nós. É, deste modo, herói da fé – tem uma relação absoluta com o absoluto. Quanto muito, cada um de nós será herói poético, porque vive o martírio, a tribulação e a incerteza para provar do testemunho de verdade. Nunca abdicamos da razão e, por isso, sofremos a infelicidade de um desentendimento entre a alma e a corpo (carne), que nos aproxima da loucura.
Lembremo-nos que como pano de fundo a esta passagem surge indubitavelmente Sara, mulher estéril, no fim da sua idade. Mas em nenhum momento vemos Abraão vacilar. O único testemunho de fé que se aproxima do de Abraão é dado por Job – símbolo do Homem encarcerado. Mas, ainda assim, é distante de Abraão. Job também realiza esse movimento místico de resignação ao infinito, mas é prisioneiro do sofrimento e da dor (7, 11 e 16).

O Paradoxo da Fé, a Abordagem

Parece-me que o objectivo principal do episódio de Abraão em Morija é o de explorar os limites do paradoxo cristão do Deus-mártir. Sofrer pela Verdade – o paradoxo da fé. Até onde vai a nossa fé? Como a cultivar? Segundo Kierkegaard, o movimento de resignação ao infinito concretiza-a e torna-a ilimitada.
Da viagem a Morija pouco ou nada ouvimos de Abraão – não se trai. O paradoxo intensifica-se. Mas até que ponto é compatível a interpretação da fé quando esta recai sobre uma morte? E para mais de um filho?
Descartes nunca duvidou em matéria de fé – não devemos ser presumidos ao acreditar que Deus também dar-nos-ia uma explicação. Contudo, teria este sacrificado seu filho?
Importa também acrescentar um ponto. Embora se formule a substância da fé não resulta que daí se alcance a fé. Fé é paixão, não advém dum pacto ou necessidade. É relação afectiva que se desenvolve com o divino. É crença e não esperança.
Para responder ao paradoxo de fé que constitui este episódio restringir-nos-emos ao descritível, ignorando as múltiplas interpretações nas quais a bíblia é omissa. Qual a expressão de Abraão? Qual a evolução da expressão de Abraão? Compreenderia Isaac seu pai? Terá implorado pela sua juventude, pelas suas esperanças? Como se torna a relação entre ambos, após esta viagem?
É, ainda, importante compreender o papel do episódio à luz do seu contexto histórico. Este passa-se próximo de XVIII ac, época onde era considerada prática comum, nos arredores de Israel, o sacrifício humano a deuses.

Luta pelo Absurdo

Nada será perdido na sua grandeza – objecto que amou. Compreende-se que o poeta não possa cumprir o papel de herói. Numa tentativa de tornar o seu herói perene, admira-o e dele se orgulha. Há, assim, quem ame o possível, amando-se a si, idolatrando outros. Mas há também o maior, aquele que ama o impossível, quem ama a Deus. Assim o é porque num combate contra um homem ou contra mil é usada a força, mas no combate a Deus é usada a nossa fraqueza – a mais difícil das batalhas.
O Homem é também carne e, por isso, é ser imperfeito. Dito isto, percebe-se porque Abraão é o maior dos heróis. Em si força é fraqueza e esperança é demência. Senão vejamos: abandonou a sua terra para ser estrangeiro numa terra prometida, onde nada evocava o que amou; trocou a razão pela fé, caso contrário nunca teria realizado a viagem.
Sempre foi o eleito de Deus. E se, porventura, fosse por Ele deserdado, melhor compreenderia a sua situação. Mas nunca lamentou ou chorou este desígnio. Para além disso, é na bíblia a única personagem que acreditou na bênção de todas as nações.
É importante fazer uma abordagem do episódio – que pai que ame o seu filho não perderia a sua fé em tal situação? O facto é que Abraão sempre o amou e sempre possuiu fé. A fé nem sempre acompanha o coração – é esta a cruz que um cristão terá de carregar toda a sua vida.
Neste sentido a dificuldade de cada vida não é o que mais importa, dado que a fé pode ser atingida por um homem de espírito simples. O grande obstáculo é que não conseguimos ter uma plena confiança no absurdo. Ainda que creiamos que Deus é Amor, a coragem é atingível, mas a fé plena não. Nunca ousaríamos fazer o que fez Abraão.
Antes houvera sido prometido a si uma descendência numerosa. Mas tal poderia derivar de Ismael, filho seu e da sua escrava Agar. A sua conduta aqui poderá, porventura, ter sido legada pelo pensamento de que Deus não lhe exigiria Isaac, contudo, certamente mostrar-se-ia disposto a entregar-lhe seu filho se tal fosse necessário. Porque acreditou no absurdo. Teve fé. E como toda a força de vontade que se ergue contra o vento, que nos afasta da loucura (ainda que, por vezes, nos deixe entontecidos), pôde gozar já com seu filho no altar e a faca em sua mão duma grande felicidade. O vigor de poder ter novamente o seu único filho legitimo nos seus braços. O segundo nascimento de ambos.


Parte II

O Movimento de Resignação ao Infinito

A matéria da dialéctica da fé é a mais subtil de todas. Imaginemos que Abraão sacrifica o seu filho em casa, afim de não ter que se dirigir ao monte de Morija. O objectivo final é o mesmo. O que falha então? A dialéctica. É possível amar a Deus sem fé, quando este se reflecte sobre si próprio. Mas o amor verdadeiro é aquele que é dirigido a Deus com fé, e aqui reflectimo-nos sobre o próprio Deus – resignação infinita.
O movimento de fé em virtude do absurdo não perde o finito. Abraão foi Homem e teve fé plena. Logo o movimento de resignação ao infinito cumpre o finito. Mais uma vez também este é subtil. Imaginemos que damos um passo audaz e, por isso, sorrimos para connosco – comprometemo-nos. Abraão nada diz, nada aparenta. Não se trai. Parece-me que um tal movimento em pleno não está associado à qualidade humana. Nesse caso seríamos um escriba devoto sem alma.
Um herói da fé como Abraão não deixa de ser um ideal. Apesar de pagar os favores pelo mais elevado preço (tudo em função do absurdo), conhece a felicidade do infinito. Por experimentar a dor da renúncia ganha uma nova sabedoria e não sofre qualquer inquietação.
Para realizarmos este salto ou movimento não podemos recear o âmago dos pensamentos nem dissimular sensações. Para sermos heróis da fé temos, assim, de aprender a prescindir. Para nunca voltarmos a ser heróis trágicos ou poéticos. Cada volver de olhos terá de abarcar uma vida. E se algo anunciar impossibilidade, teremos de permanecer calmos e agradecer. Caso contrário, a alma dispersar-se-á no múltiplo para correr atrás dos problemas da vida. Para atingir este ideal imitaremos Abraão que, me parece, ter concentrado o trabalho do pensamento num só acto de consciência. Mas, porventura, o mais doloroso para o cumprirmos será a ausência de desejo em converter-se noutro ser – isto obriga-nos a nos esquecermos de nós próprios, tal como uma borboleta não se recorda ter sido larva.
A memória, neste episódio, poderá ser tida como fonte de dor e, por isso, parece-me ser intencionalmente eliminada. Num movimento como o de resignação ao infinito, não podemos abandonar a resignação. Devemo-nos bastar a nós próprios, mesmo quando amamos, afim de conservar a frescura do amor. O prémio será a reconciliação com a vida e Deus – o repouso, a paz e a consolação no seio da dor.
Existem, portanto, dois patamares. O inferior, a cultura que leva o indivíduo a conhecer-se. O superior, o movimento de resignação que leva o indivíduo a alcançar a vida pela fé. Após esta transição tudo é possível aos olhos de Deus. Tudo. Reconhecer possibilidade na impossibilidade é crer no absurdo.
Note-se que resignação não implica fé, mas é a ela indispensável. É comum as pessoas perderem a fé no momento em que deviam, precisamente, realizar o movimento. Mas, mais uma vez lembremo-nos que a recompensa é grande – a harmonia do meu amor pelo ser eterno. Com o movimento nada renuncio, tudo recebo. Daí Abraão não ter renunciado Isaac, mas o obtido. Se não conseguirmos ser cavaleiros da fé, podemos cair em cavaleiros da resignação e, por isso, sentirmo-nos estranhos. Mas devemos olhar sempre para ela, porque a fé foi o maior elogio feito aos homens. Não coremos ao confessar a nossa fé. Não temos culpa de lá fora haver o homem incomensurável com a realidade.
Uma caminhada de três dias, para num instante acender o fogo, ligar Isaac ao altar e afiar a faca. Tudo se resume a um momento. E quando ele a nós se colocar, avançamos? Daremos esse salto místico?

A Moral

Paradoxo este. Fazer dum crime um acto santo e agradável a Deus. Mas não devemos olhar para ele deste prisma. Porque não se reduz a nenhum raciocínio, e como vimos a fé começa onde acaba a razão.
A fé não implica moralidade. A moralidade é imposta por comparação a um modelo – o geral. Para alcançar a fé (acima do geral), devemos primeiro alcançar o geral para depois nos isolarmos, isso obriga-nos a suspender, por vezes, o dever moral na nossa conduta. Se Abraão tentasse a moralidade não sacrificaria Isaac ou teria de confessar a sua crise religiosa. Toda a história bíblica mudaria o seu rumo. Contudo, não deixa de cumprir o geral ao nada dizer, o resultado da sua intervenção permitiria julgá-lo.
O pai ao amar mais um filho que a qualquer entidade está a cumprir um dever moral que molda a sua conduta, mas finda no herói trágico. Só Abraão ultrapassa esta barreira. Não devemos confundir virtude moral com vontade divina.
Note-se que se Abraão não agisse em conformidade com seu Pai o seu percurso não seria, portanto, uma suspensão teleológica da moral e, por isso, Abraão seria um assassino. É neste ponto sensível que se comete o fanatismo em nome da religião.
O processo do isolamento sobre o geral pesa sobre a cruz que carregamos. Muitos podem ajudar aquele que tenta ser herói trágico, mas ninguém pode auxiliar quem segue a estreita senda da fé, apesar de ninguém dela se excluir.
Comove-me a grandeza de Maria. Que não proveu de ser bendita entre as mulheres. No abstracto, em presença dum favor, todos têm os mesmos direitos, mas o pensamento purifica-se exercendo-se sobre as coisas. Maria deu à luz um filho graças a um milagre e aí sofreu como todos, sofreu a angústia do seu paradoxo. Apesar de caritativo, o anjo não disse aos outros para não lhe desprezar por lhe acontecer o extraordinário. Ninguém a pôde compreender e, por isso, foi ofendida. Não era formosa nem precisou da admiração do mundo. Superou o geral para ser serva do Senhor, alcançando a excelência.

Dever e Amor

Haverá um dever absoluto para com Deus? Se pelo dever me regesse voltar-me-ia a exprimir no geral. Não é pelo dever que entro em relação com Deus. O dever do amor ao próximo é um amor referido a Deus, mas nele entro em relação com o próximo. O amor quando tem sentidos vários, torna-se suspeito, tal como os sentimentos que nos repugnam. Por outro lado, não se deve confundir dever para com Deus com dever amar a Deus. E se Abraão amasse incondicionalmente mas sem dever seu Pai Javé? Algo teria mudado? Para se ser um verdadeiro cavaleiro da fé é preciso um supremo egoísmo. Só como indivíduo posso alcançar essa fé. Contudo, ao me exprimir já não é absoluta. Daí o paradoxo – o testemunho de fé não se consegue fazer compreender.
A parábola pouco visitada do Novo Testamento, no Evangelho de São Lucas XIV 24 diz-nos: ‘se alguém vem a mim e não me odeia […] não pode ser meu discípulo’. Estas palavras que ferem podem ser pretexto para exprimir essa vontade interior. A de que cada um de nós é responsável pela construção da sua torre. O ódio a que se refere o excerto poderá pretender captar a audácia e persistência que teremos de empregar nesse caminho. Mas se o nosso Deus exige amor absoluto, como compreender esse ódio? Exactamente pela manifestação da diferença entre amar Deus e o próximo. Novamente, o herói trágico renunciar-se-ia para exprimir o geral, a moral. Já o herói da fé, tal Abraão, é obrigado a renunciar o geral para se converter em Indivíduo. Parece belo tornarmo-nos compreensíveis no geral e terrível caminharmos isolados. Mas é esse o peso da cruz, ainda que não venhamos a ser compreendidos.
Abraão conhecia a alegria de viver com seu filho Isaac, mas não era só essa a sua missão. Deus testou-o. E Abraão pouco nos revelou para além da sua fé e do seu temor. A sua vida estava destinada a ser um livro sob o sequestro divino. Mas pode-se justificar moralmente este silêncio?

O Silêncio

Moralmente dever-nos-íamos libertar do secreto para nos manifestarmos no geral. Contudo, a moral não implica a fé. A fé não é primeira imediatidade, não pertence ao visível – domínio estético. A fé é imediatidade ulterior. E, por isso, o oculto é a tensão da vida dramática. Paradoxalmente a fé exige o segredo, recompensando-o. Mas fará sentido, esta exigência, quando intercede com a vida de outrem? Sabendo, para mais, que a ética exige manifestação e pune o oculto.
‘Se guardares silêncio ao mundo, darás ao mundo uma criança que é Deus, se atraiçoares o segredo, serás homem’. O silêncio como tomada de consciência da união com Deus, que não pode ser perturbado pelas exigências da ética. Esta visão que supera o geral, não pode degenerar no demoníaco nem na loucura. Demoníaco é ter desprezo para com os homens. Loucura é o sofrimento do génio na vida, que pode causar o ciúme divino – o ser desorientado perante o geral. Abraão também não podia ser incrédulo – esfomeado de alegria em conflito perante o calar (sacrificar a moral) e o falar (traduzir o absurdo). ‘Quando jejuas unge a cabeça e lava o rosto, afim de que os homens não vejam que jejuas’.
E, por isso, Abraão teve de desprezar Sara, Ezequiel e Isaac, renunciando ser cavaleiro estético, ético ou trágico para ser um cavaleiro que conhece a solidão – o cavaleiro da fé. Se não me posso fazer compreender, não falo. Um último abraço a Sara, Ezequiel e a Isaac acusar-lhe-ia hipocrisia. E assim será lembrado. Abraão, aquele que resignou a tudo e ao infinito ao renunciar Isaac. Aquele que realizou o movimento da fé para junto dele pairar a consolação de que o Eterno devolver-lhe-ia Isaac em virtude do absurdo. Conheceu a angústia de viver no silêncio. Permaneceu fiel ao Amor de Deus. E tirou a faca do sacrifício, e realizou o movimento, e sempre soube o que fazer o que fazer em cada momento, e alcançou a fé verdadeira. E com ela a paixão.

Saturday, February 24

Transparente


Lembro-me de ficar encandeado por aquela visão - nenhum outro lago em qualquer outro ponto do mundo se coloria de tal forma. Inspirei fundo, teria encontrado a paz que perdera? ter-me-ia encontrado? Ao longe, o guia e os submissos turistas não pareciam estranhar a minha ausência, eu já há muito me tornara invisível para com o mundo. Houvera, há algumas horas, aterrado, apreensivo, na Tailândia - cumprira a vontade do meu irmão, mas a tua ausência carregara a viagem de um peso maior. Contudo era, agora, com descomprometimento que perdia a trupe de vista. Mergulhei a minha mão - não a reconheci. Não pude fugir de mim, a transparência da água obrigou-me a ser verdadeiro. Tentei ignorar essa evidência e num novo olhar sobre o lago vi com absoluta nitidez a refracção dos raios solares na água, as rochas submersas banhavam-se de diversas cores e haveriam sido pretexto de lendas, de episódios fantásticos onde o divino se materializa deixando nas suas costas um traço da sua presença.
A reflexão de tais cores na minha mão afastou-me da realidade, só a temperatura gélida da água obrigou-me, algum tempo depois, a retirá-la, passei-a na testa suada. 'Envelheces-te terrivelmente nestes dois últimos anos.' Senti, novamente, no meu peito a dor da tua perda, e revi mentalmente o exame incerto diagnosticando que a enfermidade já se encontrava irreversivelmente espalhada. Nada te disse, menti a mim próprio, decidi não te fazer sofrer mais com as sessões que já te haviam tirado muito do teu ser e do meu, e fiquei durante esse último mês abraçado, sobressaltado com a fugacidade de te ter novamente nos meus braços, e assim foi, abraçado que, já sem visão, te vi partir. Agora que olho para trás, destes dois últimos tempos nada mais recordo do que estarmos abraçados, tenho medo de me recordar o quão felizes fomos a ver o Tejo, de lembrar o teu olhar brilhante, o teu sorriso. Afundei-me…

Junto ao lago um rapaz chorava ininterruptamente a morte do seu pássaro. Trouxera-o consigo para poder pintar o lago, e o pobre do pássaro que há uma semana houvera sido encontrado caído sem uma asa, morrera na mão do dono, provavelmente devido ao entusiasmo do rapaz. Ouviram-se passos - era o seu mestre, o rapaz questionou no seu choro: 'Mestre, o que existe para além da esperança?'
'Vazio...' – disse o lama vagamente – 'Esperança significa uma crença passiva numa hipótese, mas o Homem não foi talhado para se mover em hipóteses. Toda a força que ela nos dá são sombras das verdadeiras sensações, das sensações que advém duma certeza, e essa existe dentro de cada um de nós, a certeza de que os rios flúem em direcção ao mar, porque assim deve ser, a certeza de que, tal como o teu pássaro, libertar-nos-emos um dia da Terra, porque assim deve ser. A vida tem um rumo, nós nela somos protagonistas, podemos praticar incansavelmente o bem, até nos sentirmos tão leves quanto o ar, mas também somos livres de pecar e, por isso, sofremos até nos sentirmos libertos da nossa falha, nesta ou em outras vivências. De que estás a espera?, entrega o teu ser a essa força e solta as correntes que te prendem à caverna das sombras, se consegues ver um novo brilho no que te rodeia é porque o compreendes. Já não és mais rapaz.'
O homem percebera que num lugar distante da Terra o seu pássaro, em paz, continuaria a construção dessa edificação que nos foi imposta. Deixou, pacificamente, que seu lama desaparecesse – nunca existiu, de facto, nenhum lama. Já não iria pintar o seu lago. No seguinte momento, num rasgo de ânimo, o homem deita as suas gavetas e ferramentas ao lago, que calou ao longo dos séculos tudo o que vira. Enquanto o homem se afasta, as tintas percorrem verticalmente á água transparente, como um pó mágico de mil cores, e assentam calmamente no seu fundo, como que envoltas em sabedoria.

Já não é a esperança num futuro diferente que me move, mas sim a convicção de que, onde quer que estejas, estarás num lugar digno da tua essência, a convicção de que numa próxima vivência nos possamos abraçar e sentir nosso o tempo, até que em afectos nada sobre.
Lavei o meu rosto em água. 'Estás diferente.' Deitei-me e olhei para o céu, as lágrimas que agora caíam camufladas pelo rosto molhado significavam que tinha alcançado esse equilíbrio entre o meu ser o teu e as coisas, não haveriam mais receios, só uma saudade apaziguadora.
Despi-me e mergulhei em direcção ao infinito.

[Inspirado, a teu desígnio, na palavra esperança.
Multimédia complementar: ‘Nazuk’ de Maria João e Mário Langinha.]

Tuesday, February 13

À procura dum significado

Passei a manhã em busca interior por um presente que evidenciasse o significado dum sentimento agudo de afecto perante outra pessoa, costumam designar este estado de 'amor', mas como nunca encontrei dois significados coerentes acerca desta palavra tenho receio e vergonha de o aplicar. Fiz de tudo por o tentar materializar mentalmente para após a aquisição o poder embrulhar orgulhosamente e oferecê-lo, mas, ao contrário do que pensei ser possível, tal materialização nunca me ocorreu. Até que tive a brilhante ideia de o procurar no meu baú de recordações, porque, como sabemos, a forma como descrevemos os sentimentos que nos ocorrem pela primeira vez, pelo facto de ser ingénua, aproxima-se do verdadeiro, e, por isso, encontra-se despida de outras percepções e influências exteriores que vamos adquirindo progressivamente. Em nada resultou, tudo o que encontrei foram frases sentidas nas minhas vivências mas que, para além, de não serem expressivas na forma como foram abordadas, também não conotam qualquer tipo de sentimento semelhante ao que sinto agora. Fui demasiado estúpido, por pensar que por instantes poderei ter vivido algum vestígio daquilo que sinto agora! Mas, não me dei por derrotado, porque tinha percebido inequivocamente que aquilo a que chamam 'amor' é um sentimento único, porque o que se sente num instante, nunca mais se recuperará, porque um próximo instante enche-se de um novo sentimento. Logo o amor é infinitamente polissémico.

Senti o mundo mover-se por baixo de mim, como poderia encontrar um significado para uma palavra com estas características, pior!, apercebi-me, ao olhar novamente para o bau, que as cartas, livros e brinquedos que talharam parte da minha personalidade não tinham nada de ridículo e vestiam-se de sentimentos nostálgicos e de complacência em relação ao que vivi outrora. Era agora, portanto, confrontado com uma nova questão, não existe um significado fixo para definir 'amor' num dado instante, porque a forma como penso sobre o que senti não me revela o que senti, apenas uma mistura disfusa de recordações, que não foram os meus sentimentos porque são misteriosamente enganados pelo meu desejo egoísta de os reproduzir e pelo que, indubitavelmente, estou a sentir quando os reproduzo. Tenho a certeza que, enquanto, crianças não nos sentimos angustiados com a construção duma casa Lego, por pensarmos, que esse momento poderá não se encher da mesma magia futuramente.

Sentei-me no sofá poeirento, estava esmagado - percebi que a estes dois problemas, na manifestação do sentimento, juntava-se um terceiro - o de que o 'amor' se manifesta a diferentes níveis, ou seja, é diversificado e depende, entre outros, do receptor. Este poderá ser uma pessoa, um animal, um pinhal de areia gélida à beira-mar ou até uma peça Lego, pode ser uma entidade individual ou colectiva, abstracta ou concreta... posso amar tudo e nada, mas a cada coisa corresponde um diferente amar. Depressa resolvi na minha mente a dependência em relação ao primeiro problema, o de que posso num dado instante amar vários destinatários, cada um de diferentes formas. Ao receber um presente num embrulho escrupuloso e cuidado, amo a entidade que mo deu pela saudação entusiástica, sem deixar de amar complacentemente o autor do embrulho.



Mas o 'amor' que sinto quando a tua imagem se revela é, egoisticamente, só para ti. É tão puro e verdadeiro que ardem, de forma clara e límpida, em recordações, as vivências que partilhámos. E está desprovido de instantes, porque a sua riqueza e perfeição deriva em unicidade. Falho!, não te comprei nenhuma peça única que seja digna deste sentimento, mas anexado ao meu ser ofereço-te esta carta - uma descoberta, na qual a tua entidade está também implicada, a da revelação do significado do vocábulo 'amor': aliado da nossa evolução, é nas coisas temporal, polissémico, degenerativo e composto, e em ti se volve gradualmente em intemporalidade e singularidade, só em ti é perene e uno.
Despejo o meu baú de recordações de infância, enquanto o cubro de saudade tua.

Wednesday, February 7

Corda

...o que se passa lá fora? eu não quero acreditar que os valores que parecem cada vez mais ser legitimados pela sociedade são os de proveito próprio aliados a uma profunda hipocrisia ou tentativa de indiferença relativamente à vida dum terceiro ser, cuja existência é pelos mesmos culpabilizada. Não podemos delegar na mulher a consciência relativamente a esta decisão, decisão que me parece só se dever operar em casos extremos (na maioria já previstos pela lei), porque a proclamada responsabilidade e humanismo levariam por si só a uma exclusão da hipótese - que ser em consciência tira de forma irreversível a existência de outro? razões monetárias e de estabilidade podem ser delicadamente resolvidas com recurso a centros de apoio, aconselhamento ou adopção. O próprio feto terá a possibilidade de construir a sua identidade através do contacto único com a Terra e os seres. E lembremo-nos que falamos de situações hipotéticas passíveis de serem evitadas, e, para isso, deverá, com certeza, ser prestada neste campo uma maior formação e divulgação.

Por favor, não me peçam para enraizar este novo conceito de ética na qual situações como a descrita são liberalizadas. Ainda que pareça duro, não podemos oferecer, por existirem pessoas nesta situação, um aborto! - primeiro porque isso torna a morte de um filho um acto incensurável e, depois, porque a banalização da noção do termo trará consigo um aumento do número de abortos e uma realização desprovida de justificações (com dependências num só ser) - deve, ao invés, ser oferecido apoio.

Parece-me consensual a despenalização da prática de aborto, mas prefiro, dizendo não, que uma tentativa de constituição de crime sem pena seja adiada (nenhuma mulher está totalmente isenta de causa e recordemo-nos que ainda nenhuma foi presa), em detrimento dum cultivo de valores que apenas protegem o ser que fez emergir a situação, sendo paralelamente destruída de forma irreversível a vida de um outro ser. A liberdade é um valor essencial, mas exige responsabilidade e, por isso, tem um limite absoluto.

A moral caracteriza-se por ser passível de se discutir, mas não neste caso. Não devemos, por isso, olhar cegamente para o que se pratica noutros países sem antes nos questionarmos se o que neles reside é o mais correcto. Não me alargando mais por outras e imensas questões que este tema levanta, deixo-vos a reflectir no que estamos nós a construir neste mundo e o que queremos dele... o que se passa lá fora?

Monday, November 20

Moldar um sólido metálico

Dei por mim a pensar.. a que facto se deve uma subita necessidade de deixar marcados pensamentos? e, por ixo, para dar resposta a essa questao voltei com um novo esboço!, ainda nao sei a resposta, mas estou confiante na sua revelacao. Porque escreverao as pessoas? nao me parece que se prenda só com o gozo de leitura de possíveis consumidores. Sera o homem um bicho tao individualista ao ponto que queira deixar uma marca duma sua capacidade? acho que também vou excluir esta hipotese, pelo simples facto, de que se assim fosse, o leitor rapidamente aperceber-se-ia dessa traicao, e como bom vingador dum modo ainda mais rápido colocaria o escrito no papelao, isto se merecesse uma dignidade capaz de nao o largar no lixo comum. Hmm... é claro que os motivos tambem dependem do escritor, cada um tem a sua personalidade, mas como ixo iria estragar a minha logica de raciocinio, e como nao gosto de gastar a tecla 'back' vamos dar um salto criando uma barreira de abstraccao e descobrir o que leva uma entidade a escrever, a cantar ou a produzir musica... quais as razoes que estao por detras do fabrico da arte.

Percorri ao ar gelido do entardecer o caminho montanhoso que me levava á casa do meu filho, olhei as minhas maos enrugadas, estremeci quando revi a minha idade - porque penso que sou algo que nao sou, ou sera que o meu corpo é que é algo que nao sou! A casa estava vazia, nao me preocupo, consola-me pensar que ele estara, neste momento, apreendendo o mundo la fora, adquirindo experiencia, sinto uma especie de comocao para com ele, nao me preocupa saber com quem esta, ja leguei todo o meu saber, inundei-o em teoria e, por vezes, cheguei a ser severo. Ganhei rugas de afecto, mas agora é melhor deixa-lo ir, escolher o seu caminho... olho pela janela, vejo-o afastar-se errante a alguns quilometros.

Estou melhor, consigo perscutar o mundo com uma nova clareza. Percebo que a personalidade de cada um nao so esta nas nossas accoes, mas tambem na forma como apreendemos a realidade - e é ixo que é mágico, porque intimo, e ninguem poderá, em momento algum, desvendar exas emocoes! Mas quando essas sensacoes transbordam ha uma ansia de partilha, estamos cansados que nos vejam de uma forma comum, queremos mostrar um pouko do que sentimos quando apreendemos a realidade...
e, por isso, cantamos (reinvindicamos a nossa personalidade), escrevemos e fazemos arte. Arte significa individualidade, egoísmo, prazer, intimidade e acima de tudo uma tentativa marcada ou desesperada de demarcacao do eu derivada dum copo cheio de sensacoes especiais, intimas e magicas... Ja me despojei dalgumas sensacoes, contudo a água continua a transbordar, nao te preocupes, ja me conformei com isso!

Saturday, November 18

Chuva

Enquanto a chuva cai indiferente la fora, nao ha nada melhor do que nos refugiarmos em cima das nossas camas e explorar o que se vai passando num local bem distante ao da nossa realidade, por detras dessa tempestade, e deixarmo-nos levar conscientemente, reinventando identidades, ate que o proprio temporal se torne tao distante quanto a nossa imaginacao...
...la fora o mundo corre indiferente à minha presenca, so eu pareco dar conta da minha propria existencia, talvez o conforto do sonho me esteja libertando deste mundo, fazendo-me tornar transparente, talvez seja o proprio sonho que me faca ver o mundo axim... indiferente, como a chuva que cai la fora...
para que tesouros como os seguintes nao se percam por ai, e se ainda nao te tornas-te indiferente à minha escrita, vou levar-te a dar um passeio pela agenda cultural discografica que esta cheia de boas novidades neste mes...

LURA - M'bem di fora
Uma voz grave e poderosa, que parece encontrar as proprias vibracoes da terra, soando em ritmos melancolicos e chorosos, contando historias ou soltando todas as suas cores em ritmos tribais. É o exaltar do modo de vida da nacao crioula, exa boa gente que tem o dom de ver os acontecimentos duma vida de forma especial.
Ideal se se quiserem lembrar do cheiro dexa africa ou se quiserem chutar exa dura realidade como um fitiço de funana - faixa unica!

PATTI LABELLE - The gospel according Patti Labelle
Ja perdi o distanciamento critico quanto à minha cantora de eleicao, tudo o que faz deixa-me cada vez mais perplexo, por favor, facam um clone! Este novo album tem edicao marcada para dia 21, e é o primeiro album inteiramente dedicado ao Gospel... promete trazer com ele a igreja evangelista e com ela a energia arrepiante do povo negro. Para além de conter participacoes especiais como yolanda adams, marymary ou cece winams, estao aqui presentes novos grandes temas e a regravacao de 'you're my friend' (a musica onde, nos concertos, se descalca e rebola pelo chao!) que promete agitar o peito de kualker um. Do tempo que estive com Patti, 'The Queen Of The Stage', apercebi-me que mais do que uma sublime cantora é, acima de tudo, uma grande Mulher (ah! o cd reverte totalmente a favor da cura contra o cancro da mama). Patti is a blessing... God bless u!

...e a chuva cessou. A realidade nao chama por mim, mas eu vou acabar indubitavelmente por me levantar da cama e deixar o meu sonho suspenso, bem alto junto a uma estante, de modo, que ninguém o veja ou destrua e que possa ser revisitado por mim sempre que chouva la fora ou ca dentro.

Friday, June 2

Osmose

Estás deitado... nao!, talvez me tenha expresso mal, queria antes dizer colado ao chao. Porque estar deitado implica que sintas o teu corpo paralelo a uma linha de apoio, e quando te colas ao chao a tua mente esta centrada no núcleo terrestre (ou será no cosmos?). De certo, que quando te colas já sentis-te poder testemunhar a aceleração terrestre!, lamento te desiludir, mas não foi esse o motivo pelo qual sentis-te essa vibração... quero-te mostrar como UM eu (que nao sou eu, mas só eu) conheceu esta descoberta, e, por isso, quero que viajes comigo até um sitío que não importa saber, porque não é materializável, e até uma data que também não nos interessa, porque é uma convenção que depende do sitio do universo onde o acto se sucedeu:

Existem quatro cordas no canto direito, e um baloncé do lado esquerdo, nao te preocupes com a existencia de um tecto, eles tendem para o ceu. Toca-se uma corda, ela emite um som excessivamente grave e que, por isso, é mais vibracao que som, a vibracao atinge a entidade que esta no baloiço, a propria vibracao e capaz de embalar a entidade que esta ali estaticamente sentada. Toca-se novamente a corda, cai uma gota de suor, o baloiço inicia um movimento pendular brusco, a entidade recupera o contacto com o baloiço com um plack sonoro e com um grito não menos ruidoso ou expressivo... as cordas deixam-se de ouvir, as maos que as tocavam desistiram do trabalho, ja nao ha pessoa no baloiço!... pouco se vêem mais que silhuetas de corpos, mas o tacto esse é excessivo. As peles colam-se numa tentativa de fusao, os olhares ferem-se em simultaneo agudamente, os corpos nao se parecem satisfazer, e mais uma vez batem um no outro, os musculos contraiem-se obededientes a exa nova sensação que caminha ao longe, a sensação já não caminha, corre, já não corre, cavalga, já não cavalga suspendeu-se nos céus como uma luz de força e eis que atinge o abdomen de ambos...

Quero-te dizer caro colega que os corpos não se fundiram, mas houve uma osmose de cada um deles com o solo - tanto desejaram essa coesão que criaram raízes nele.
Porque o fogo é um elemento desta natureza, não tens que te sentir retraído por o tocar, o teu corpo é mais do que uma construção, é parte integrante dessa natureza selvagem que és tu e eu... agora que já o conheces podes meditar sobre ele e partir em busca de uma nova realização, aquela que és tu antes de ser corpo, e que não se materializa...
Por isso, deita-te e escuta... sentes?

Sunday, January 29

O que terão em comum os nossos pensamentos?

tenho muito que escrever e pouco tempo para o concretizar - uma vida! a minha cabeça é um turbilhao de novos pensamentos, o que escrevo agora dificilmente e o pensamento original porque o que pensei e uma recordaçao sobre a qual escrevo, e como todos sabemos uma recordaçao e passivel de ser modificada, talvez nem tivesse sido esta a linha que deliniei para o meu post
o que estou escrevendo é o condensar de muitas ideias sobrepostas e que, por isso, vão perdendo a essencialidade original - conseguirá um grande escritor acompanhar todos os seus pensamentos, possivelmente esta será a arte de escrever!, por enquanto, ainda me considero um pensador, sim, os meus pensamentos parecem fluir vertiginosamente por detras do meu olhar, qualquer visão é um pretexto para iniciar um novo debate...
também não sou muito loquaz porque tal como na escrita os sons ou as palavras não acompanham os pensamentos - estes são constituídos por imagens, e uma tradução verbal destas imagens, além de atrasar os pensamentos, vem acompanhada duma nova perca de essencialidade...

todos os objectos à minha volta têm vida, olho o relógio, aprecio a sua beleza, que bom seria que fosse simplesmento belo, a sua beleza é angustiante, quem o terá desenhado? quem o terá construído? como terá sido construído? porque o comprei?... desde pequeno que tanto como me deleitam, me intrigam os pensamentos... e, de repente, tenho tudo à distância de nada. É correcto pensar que a arma atómica poderá ser a mais mortifera? duvido que o pensamento que sobre elas incidiu o fosse menos...
por vezes, entretenho-me a pensar que choco ocasionalmente com um génio como Einstein ou que durante um destes encontros me são legadas tais fórmulas... ainda que não as consiga recriar, tudo o que construí à sua volta é sufeciente para tornar uma mentira verdadeira. Na verdade, sempre tive este enorme problema - uma extrema dificuldade em distinguir o que realizei do que pensei

rio-me a pensar se havera quem se identifique com o ritmo dos pensamentos, provavelmente ao ler estas precisas palavras seja criada uma nova barreira que baralhe o leitor - que te está a baralhar!, porque estiveste a ler este post recriando pensamentos sobre ele, e agora debates-te fortemente com um obstáculo, são os teus pensamentos que estão aqui a ser referidos, eu estou de, certo modo, manipulando-os... não te precisas de esforçar por tentar compreender esta súbita mudança de papéis, agora serás o escritor e eu o leitor, o teu pensamento está preso a estas palavras mesmo que o tentes enganar estarás, indubitavelmente, a pensar noutra coisa que não o que escrevo, por isso, deixa-te seduzir e escravizar por esta escrita e lembra-te que um escritor, ou melhor, um pensador, é só imparcial com o leitor até ao ponto disso não lhe criar aborrecimento, de outro modo, por mais subtil que seja acabará por estar sempre manipulando a tua mente e com isso recriando os seus próprios pensamentos

Sunday, December 11

olhar sobre o inexistente

- não entre dessa forma senhor, peço-lhe!
O nepalês não deu ouvidos ao guardião e entrou no templo. Sentia-se incrédulo - toda a sua raiva acumulava-se num só ponto que se intensificava com os olhares cheios de ternura que se espelhavam nos budas de ouro - nem os seus fiéis companheiros se pareciam mostrar complacentes neste momento. Parou, tinha chegado, olhou em volta, tudo o que conseguiu vislumbrar foram sombras de tochas dançando por cima das tapeçarias persas.
Empurrou a porta pesada...

o Lama, de costas, elevava os braços e, por momentos, o nepalês jurou ver ali à sua frente um leopardo alongando suas costas, sentiu-se invadido por uma calma qualquer que o próprio não conseguia manipular, todo o seu sangue que pulsava bem forte antes de ali entrar, depressa se dispersava por todas as partes do seu corpo, desejou não estar ali naquele momento... afinal tudo o que arquitectara na sua mente não eram mais que sombras de tochas, o lugar não era o tão desejado palácio, mas uma modesta e pobre divisão que continha apenas um baú, reparou... o tecto da sala eram as próprias estrelas - tudo ali parecia tão perfeito, que se sentiu tentado a sair ajoelhar-se aos pés do seu Guatama e confessar tal atrevimento. Ainda de costas, o Lama começou:

- os sonhos são como estas estrelas - virou-se, inspirou a brisa gélida que soprava dos Himalaias, e o nepalês percebeu que o seu olhar carregava a sabedoria e o equílibrio de um supra-humano - olhamos achamo-nos donos delas, queremos as tocar, mas são elas que nos têm. Em crianças construímos e destruimos, mas não deixamos de sonhar, a rede que usavamos para as prender já não serve, porque está rota? Não. Nós é que já não a sabemos utilizar, tornamo-nos rudes, não percebemos que mal é que lhes fizémos e elas já não se deixam apanhar - sentou-se, convidou o nepalês a sentar-se também, mas por embaraço este recusou três vezes como acto de boa educação acabando por se sentar, continuou

- olha para os Ghat - apontou para os montes brancos que se erguiam a umas centenas de quilómetros do templo - há mais para além da vida, inspira esta brisa, sentes? deita-te... - passou-lhe a mão sobre os cabelos - não precisas de temer o mundo, nem muito menos aliar-te a ele pelas mesmas injustiças que ele te cometeu, há mais...há um mundo de sensações onde te podes espriguiçar ao sol e sorrir o tempo inteiro sem que sejas apelidado de tolo, há um mundo onde podes rastejar, farejar a Terra e até comê-la se te apetecer, e mais...

- que mais poderá haver? - perguntou timidamente ao seu mestre, sabia dentro de si, que tivera, desde logo, sido inútil a revolta contra os seus deuses, não são eles que nos vão embalar, a solução está em nós, nós é que podemos tornar a vida uma pintura nossa, só, só nossa, com as cores que desejarmos

- o teu mundo, o mundo que não existe nesta Terra, mas que poderá existir algures a biliões de cem anos luz daqui, numa daquelas estrelas, e nesse mundo poderás finalmente sentir-te em coesão com a natureza e as coisas, foi esse o caminho que nos legou Buda - vislumbrou um sorriso no Nepalês, que por momentos aparentou ter a idade de uma criança - mas para que possas navegar nesse teu mundo terás que primeiro torná-lo acessível a todas as outras pessoas - o Lama percebeu que o Nepalês não tinha compreendido esta última mensagem, mas ficou contente por saber que o tinha feito voltar a sonhar, a própria vida se encarregaria de lhe mostrar que esse mundo é o da satisfação por poder ajudar as pessoas a fazer a sua rede, para apanharem bocados de queijo desta lua partida ou mesmo da mais longíqua estrela, mas nunca deixando de sonhar...

O Nepalês abraçou o musculoso Lama e caminhou em direcção ao baú, nele deixou a sua camisa manchada de sangue e todo o dinheiro que acumulara ao longo da sua vida, sentiu-se mais novo, o frio já não o incomodava, olhou o Lama, sorriu, saiu do templo, da sua aldeia, andou e andou, não importavam os seus pés ou o ar gélido que lhe prendia os musculos, ele carregava em si uma nova força... olhou o céu mais uma vez e desfez-se em tanto brilho